"Assim
também vós, depois de haverdes feito quanto vos foi ordenado, dizei: Somos
servos inúteis, porque fizemos apenas o que devíamos fazer." (Lc 17.10)
Esta
é a parábola das perguntas. Dizem que sábio não é aquele que sabe todas as
respostas certas, mas aquele que sabe fazer as perguntas certas. Isto se aplica
perfeitamente a Jesus, sabedoria de Deus (I Co 2.7). Além de saber todas as
respostas certas, ele também sabia fazer as perguntas certas. Estas podem ser
penetrantes, conduzindo a respostas reveladoras ou a descobertas maravilhosas.
Elas podem, ainda, expor motivos ocultos, bem como capacitar a pessoa a
enfrentar a verdade que não havia admitido nem para si mesma. Vamos analisar o
texto procurando, primeiramente, compreender o propósito da parábola.
O
que teria feito Jesus contar esta parábola aos discípulos? Ela parece não ter
conexão alguma com os versículos que a antecedem. Deve-se, porém, frisar que o
evangelho de Lucas não é somente uma exposição inspirada, mas, também,
exposição ordenada dos fatos (Lc 1.3). Logo, a parábola está relacionada com os
versículos que a precedem (Lc 17.1-6). Nestes versículos, Jesus ensina de modo
muito claro, como os seus discípulos deveriam se relacionar com os “irmãos
pequeninos” e com os “irmãos arrependidos”, que eram abertamente desprezados
pelos fariseus. Na relação com os pequeninos, os discípulos deveriam evitar
provocar escândalos. A radicalidade com que Jesus tratou o tema do escândalo
tem a sua razão de ser. Escandalizar, no evangelho, significa tornar-se ocasião
de pecado para alguém, levando-o a afastar-se do projeto salvador de Deus.
Os
discípulos poderiam ser motivos de escândalo de vários modos: pela severidade e
pelo moralismo exagerado, pelo preconceito segregador, pela falta de paciência,
em se tratando de ajudar os mais fracos, pela omissão, em caso de desvio grave,
por não serem firmes, quando necessário. Essas e outras atitudes afins poderiam
resultar no afastamento dos pequeninos do caminho da verdade, com graves
consequências. Na relação com os pecadores, os discípulos deveriam evitar
cultivar ressentimento. Jesus sabia que a sua igreja não seria feita de pessoas
incapazes de pecar. Ao contrário, comportaria, entre os seus membros, gente
afetada pelo egoísmo e sempre disposta a romper os laços da comunhão. Daí a
exigência de os seus discípulos se predisporem, continuamente, a refazer os
laços rompidos.
Isso
deve acontecer da seguinte maneira:
Ø Quem
peca, deve ter consciência de suas faltas e das consequências negativas para a
comunidade.
Ø
O passo seguinte consiste em ser capaz
de declarar-se arrependido e pedir perdão.
Ø Quem
foi vítima da ofensa alheia, deve estar sempre pronto a perdoar, sem conservar
ressentimento ou rancor no coração.
Aparentemente,
os discípulos verificaram que muita fé seria necessária para “viver sem
provocar escândalos” e “perdoar sem agasalhar ressentimentos”. Sendo assim,
pediram ao Senhor: “Aumenta-nos a fé”. Jesus, então, frisou que, quando o
assunto é fé, o que importa não é a sua quantidade, mas, sim, a sua
autenticidade, dizendo: “Se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a esta
amoreira: Arranca-te e transplanta-te no mar; e ela vos obedecerá” (Lc 17.6).
Se tivessem uma fé autêntica, os discípulos poderiam cumprir facilmente as
instruções do Senhor. Isto, porém, poderia conduzi-los ao orgulho espiritual.
Para adverti-los sobre esta questão, Jesus lhes contou a parábola dos servos
inúteis, cuja verdade principal é mostrada logo a seguir.
Vamos,
então, à primeira pergunta da parábola: “E qual de vós terá um servo a lavrar
ou a apascentar gado, a quem, voltando ele do campo, diga: Chega-te e
assenta-te à mesa?” Não há, nos evangelhos, indicação alguma de que os discípulos
fossem donos de terras ou de servos. Jesus estava apenas apelando para a
imaginação deles. Qual deve ter sido a reação dos discípulos à pergunta de
Jesus? A narrativa não registra, mas é possível imaginá-la. Pedro, o mais
afoito dos doze, talvez tenha dito: “se fosse dono de um servo, nunca diria
isto, Mestre”. Se Pedro reagiu desse modo, reagiu de acordo com os padrões da
época. Jesus prossegue o diálogo, fazendo uma segunda pergunta: “E não lhe diga
antes: Prepara-me a ceia, e cinge-te, e serve-me, até que tenha comido e
bebido, e depois comerás e beberás tu?” (Lc 17.8). Pedro, de novo, diria: ... Sim,
Mestre. Eu diria isto para o servo. De fato, um senhor, quer gentio, quer
judeu, por melhor que fosse jamais convidaria o escravo para tomar lugar à mesa
de jantar. O senhor não comia com o servo. Após chegar do campo, onde
trabalhara arduamente, lavrando a terra e cuidando do gado, o servo ainda teria
muitas outras coisas a serem feitas na casa do seu senhor, antes de poder
sentar-se ou deitar-se. Um desses trabalhos adicionais era preparar a refeição
do seu senhor.
A
última pergunta da parábola é: “Porventura, dá graças ao tal servo, porque fez
o que lhe foi mandado?” (Lc 17.9a). O próprio Jesus responde: “creio que não”
(Lc 17.9b). Das três perguntas, esta é a que mais merece atenção e análise. Se
o conteúdo desta pergunta não for bem entendido, a verdade principal da
parábola não será adequadamente captada pelo leitor. Então, por favor, observe
a expressão “dá graças”. Qual o sentido desta expressão? Você dirá: agradecer.
Na verdade, todas as versões trazem este sentido. De acordo com Bailey, [Bayley
(1989:299)], porém, o texto grego transmite um sentido mais profundo e
precioso.
O
verbo grego eucharisteo (agradecer)
ocorre quatro vezes em Lucas. Ele é usado na narrativa da cura dos dez leprosos
em Lucas 17.16. Desta forma, Lucas conhece esta palavra e a usa mais do que os
outros evangelistas. No entanto, nesta parábola as palavras constantes do texto
são: me echei charin to doulo.
Literalmente esta frase pode ser assim traduzida: “terá ele alguma graça/favor
pelo servo? A palavra charin é o
vocábulo que o Novo Testamento comumente tem o significado de graça (...). No
entanto, em Lucas esta palavra graça relaciona-se primordialmente com crédito
(6.32-34) e favor (1.30).
Jesus
conclui a parábola, aplicando-a aos discípulos: “Assim também vós, quando
fizerdes tudo o que vos for mandado, dizei: Somos servos inúteis, porque
fizemos somente o que devíamos fazer”. Mas como entender a expressão somos
servos inúteis? A palavra servos foi traduzida da palavra grega doulos, que significa também escravo. A
outra palavra, “inúteis”, é uma tradução de “achreios”, cujo sentido literal não é “sem utilidade”, mas, sim,
“sem necessidade” (a = sem + chreios = necessidade). Dizem que, ainda hoje,
quando um trabalhador de uma aldeia do Oriente Médio presta algum pequeno
serviço a um dono de casa, tem lugar o seguinte diálogo: O dono da casa
pergunta ao trabalhador: “Há alguma necessidade? (Devo-te alguma coisa?)”. O
trabalhador responde: “Não há necessidade? (Não me deves nada)”.
Após
cumprirem o duplo dever, ou seja: de um lado, evitar que os pequeninos tropecem
por sua causa, e, do outro, estar sempre dispostos a perdoar os arrependidos,
os discípulos deveriam estar cientes de que o Senhor não lhes deveria
absolutamente nada, nem tratamento diferente, nem recompensa especial. Eles
deveriam ser como escravos que serviam aos seus senhores, não tendo em vista
receber presentes ou salários. O discípulo é constituído para o serviço do
reino. É na vocação de servidor que se realiza e encontra um sentido para sua
vida. Sua alegria consiste em entregar-se, sem reservas, à missão recebida, sem
nada exigir em troca. Basta-lhe a consciência do dever cumprido.
O
Senhor espera que os seus servos e as suas servas cumpram o seu dever,
incansavelmente - Na parábola, vimos que, antes de o servo sentar-se para
comer, tinha outra tarefa a cumprir, ou seja, preparar a refeição de seu
senhor. No reino de Deus, o trabalho de um servo e de uma serva também não
termina nunca. Não importa se já pregamos bastaste, se já ensinamos bastante,
se já visitamos bastante, se já cantamos bastante, se já ajudamos bastante, se
já dirigimos bastante. Se recebermos outro trabalho do Senhor, devemos
realizá-lo sem reclamar. O nosso tempo pertence totalmente a ele, e não há dias
de folga ou férias no seu serviço. Nosso maior objetivo deve ser sempre atender
e suprir as necessidades da casa do Senhor.
O
Senhor espera que os seus servos e as suas servas cumpram o seu dever,
humildemente - Não devemos orgulhar-nos de nossa realização ou obediência, mas
devemos lembrar sempre que não fizemos nada mais do que o nosso dever. Em
outras palavras, o servo possui humildade. Ele não compete, não imita, não
copia, não sobe na tribuna principal, não lustra sua imagem ou agarra o
refletor. O servo não gosta de receber louvores, não gosta de receber glórias,
não gosta de receber os créditos pelo serviço prestado, não gosta de tapinhas
nas costas, não gosta de ver pessoas exclamando de admiração, não precisa
receber agradecimentos para continuar servindo. O servo conhece o seu dever,
admite suas limitações, cumpre suas tarefas silenciosa e constantemente. Se
alguém quer fazer dele seu ídolo, ele não permite nem fantasia tal insensatez.
O
Senhor espera que os seus servos e as suas servas cumpram o seu dever,
desinteressadamente - A Bíblia ensina que quem serve ao Senhor, será
recompensado, na vida presente e na vindoura. Na carta aos Hebreus, está
escrito que “Deus não é injusto para ficar esquecido do vosso trabalho e do
amor que evidenciastes para com o seu nome, pois servistes e ainda servis aos
santos” (Hb 6.10). O próprio Cristo, quando instruía os doze para uma vida de
serviço, prometeu-lhes uma recompensa eterna, para quem desse um copo de água
fria a outrem: “Eu afirmo a vocês que isto é verdade: quem, apenas por ser meu
seguidor, der ainda que seja um copo de água fria ao menor dos meus seguidores,
certamente receberá a sua recompensa.” (Mt 10.42 – NTLH) Todavia, não
trabalhamos para o nosso Senhor simplesmente para receber recompensas. Nós lhe
servimos porque o amamos.
CONCLUSÃO:
Nesta
era da autopromoção, da defesa dos próprios direitos, do cuidar apenas de si mesmo,
do vencer pela intimidação, do esforçar-se para obter o primeiro lugar e das
várias outras estratégias interesseiras, não podemos esquecer que Deus nos
chamou para sermos conformes à imagem de seu Filho (Rm 8.29b), que não veio
para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos (Mc 10.45).
Depois
de nos incluir em sua família, o Senhor Deus se empenha para colocar em nós a
mesma qualidade que tornou Jesus diferente de todos os outros em sua época. Ele
está envolvido em produzir em nós as mesmas qualidades de serviço e doação que
caracterizaram seu Filho, que sempre serviu incansável, humilde e
desinteressadamente.
Que
ele continue essa boa obra em nós.
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